quarta-feira, 10 de setembro de 2008

NOITE DE IRA!

De repente me lembrei de uma gravura religiosa que retratava os caminhos para o inferno e o paraíso: a estrada que conduzia ao paraíso era sóbria, estreita e sem maiores atrativos; em contraste, o lado que levava ao inferno e à perdição era larga, cheia de luminosos, música e luzes. Tal lembrança me veio à memória ao me deparar com a entrada para o festival de inverno 2007: uma enorme entrada, iluminada e com as imagens de algumas atrações do palco principal – Lulu Santos, Herbert Vianna Charlie Brown Júnior e Dani Carlos. Um som convidativo vinha além da entrada, as luzes ao fundo convidavam a uma realidade colorida e festiva.

A noite estava fria – clima difícil aos que não estão acostumados às noites do inverno conquistense. O acesso era subdividido em vários corredores feitos com corda, cada um para cada tipo de bilhete de entrada; havia as passagens reservadas à pista – que era maioria -, e as destinadas aos que portavam entrada especial, que dava direito ao camarote e, por fim, o corredor reservado aos credenciados. Dirigi-me a este.

Depois de uma breve revista exibi minha pulseira com a inscrição “IMPRENSA” e entrei no Parque Teopompo de Almeida. De imediato, à minha direita, avistei a Tenda Eletrônica – espaço alternativo reservado às bandas de rock, e à música eletrônica. À minha esquerda a pista de patinação no gelo atraía os primeiros a entrar. À frente, e logo em seguida, uma infinidade de boxes exibia os mais variados produtos: motos, carros, serviços, e as mais diferentes vertentes de negócios que ornam a vitrine do consumo na vida moderna.

Tudo muito limpo e organizado. A segurança – composta por policias militares, civis e agentes particulares – traduzia o esforço em se realizar um evento tranqüilo e sem sobressaltos. Bares, muitos bares e restaurantes, desde os tradicionais churrasquinhos e cerveja a sushis, vinhos finos e cachaças exóticas – como a que era servida no tronco do bambu, com mel e limão. As principais cozinhas da cidade marcaram presença com estruturas que não deixam nada a desejar de suas sedes originais.

Dei uma rápida passada pelos espaços alternativos, fui à já citada pista de patinação no gelo e à tenda eletrônica – que, naquele momento era badalada ao som de Shau e os Anéis de Saturno. O espaço do forró, sem dúvida, era um dos mais movimentados. Os apreciadores do estilo se esbaldavam em pares ritmados ou acompanhavam, com um mexido característico, o som dos acordes do chamado forró universitário. Em cada espaço havia bares, das mais deferentes administrações. Era possível, por todo parque, encontrar vendedores de petiscos, cigarros, água de coco e balas. Cada metro aproveitável ao comércio foi devidamente utilizado.

Tendo como tema a obra de Glauber Rocha o Festival de Inverno 2007 não é só um acontecimento musical. Fazendo jus à memória do original cineasta conquistense a diversidade cultural permeia a festa.

O Camarote, ah o Camarote do Festival. Espaço sonhado por grande maioria que não se dispõe a pagar mais – bem mais – caro ao evento. Foi um dos ambientes que despertava em mim certa ansiedade em conhecer. Confesso certo desapontamento ao subir até a área vip da festa. Além da decoração diferenciada – garçons, poltronas, tapetes, um palco, iluminação, jogo de luzes (estilo casa noturna), e seguranças mais bem vestidos e, consequentemente, mais mal-encarados – o lugar não atraía muito. È claro que os transeuntes eram diferenciados do público comum: pude reconhecer alguns membros do Poder Judiciário, empresários e gente que, a julgar pelos trajes e modos, pertenciam a uma minoria com um poder aquisitivo maior que os demais da sociedade. Tudo era bem delimitado por claras fronteiras: grades, seguranças e, subjetivamente, uma sensação coletiva que aquele era um mundo à parte, destinado a uns poucos que, encapsulados dentro desta redoma, vivem uma festa bem distinta daquele mar de almas que os cercam. Desci os degraus me questionando se valia a pena pagar mais caro para passar o Festival alheio à pulsação e calor, tão comum nos acontecimentos onde flui a diversidade que compõe o gênero humano.

Enfim as atrações do palco principal. Elomar, apesar da previsão de se apresentar às 20 hs, iniciou sua cantoria duas horas depois. O público cativo acompanhou a curta apresentação com a uma reverência que beirava à idolatria. Nada mais justo. Enfim, tal artista é uma pérola que, para os apreciadores, deve ser admirada cada vez que se tem oportunidade.

A boa produção dos anos 80 está em alta no cenário musical brasileiro, há toda uma vertente de resgate às boas produções de vinte anos atrás, e grande parte dessa safra de vinho musical é composto do bom e velho rock´roll. Sexta feira no Festival de Inverno 2007 foi, sem dúvida, uma celebração ao estilo que inspira e embalou gerações. Leoni fez o público cantar clássicos do Kid Abelha e deu mostras de seu inquestionável talento em composições nem tanto conhecidas mas, nem por isso, de menor valor.

Logo após o show de Leoni uma notícia produziu um efeito borbulhante em meu espírito: Raquel – uma das jornalistas empenhadas na organização do evento –, numa prova de valorização às mídias alternativas, acenou com a possibilidade do meu acesso – bem como outros correspondentes - ao backstage – até então eu não possuía acesso a estes recintos. Interiormente vibrei.

Liguei imediatamente para o meu chefe, comuniquei a boa nova e pedi o gravador digital. O colega veio de pronto, talvez tão extasiado quanto eu. Deu-me rápidas instruções de como operar o artefato e me acompanhou até à porta do camarim de Leoni. Fui apresentado Miguel Cortes – locutor do programa Som da Tribo – sob recomendação pra “colar” no cara pois, perto dele, eu me daria bem.

Toda a imprensa já estava a postos. Senti uma sensação estranha, um sentimento de poder. Eu era um privilegiado por estar ali, a uma porta dos deuses que reinavam há pouco no palco. Naquela hora experimentei o efeito narcotizante que vicia o jornalista e o torna dependente de tal atividade.

Enfim tive acesso ao recinto onde Leoni finalizava sua participação no festival de Inverno. O astro comia frutas e aparentava cansaço. Não havia nenhuma bebida alcoólica na mesa. O autor de muitos hits que compõe nossa memória foi, sem exagero, de uma boa vontade budista e de uma educação ímpar. Respondeu a todas as nossas perguntas. Elogiou o evento e, questionado por mim sobre um parentesco seu na cidade, disse que tinha uma tia em Vitória da Conquista – uma prima o visitou em seu camarim. Ao final da entrevista procurei me policiar para evitar tietagem mas, diante das fotos que todos procuravam tirar junto ao ídolo, não resisti e posei junto ao ex Kid Abelha.

Saímos. Seguindo a recomendação do meu colega e mentor naquela atividade, segui Miguel. O segui porta adentro e, quando dei por mim, estava diante de Nasi, vocalista da banda Ira! Alguma fração de segundo foi necessária para assimilar o ambiente onde estava, demorei para acreditar na realidade à minha volta. Rubenildo Metal, que também tinha “colado” em Miguel, se sentia à vontade no camarim: comia pizza como se estivesse entre velhos conhecidos. Nasi, sentado em uma poltrona e o cotovelo apoiado na mesa, respondia às perguntas feitas por Miguel Cortes. Um Ballantines repousava na mesa. O vocalista do Ira! tomou um gole de wísque e acendeu um cigarro. Em meio a tragadas, terminou a entrevista para o Som da Tribo. Aproveitei a deixa e perguntei a Nasi o que ele achava da atual conjuntura política do país. Demonstrando um incomum senso de realidade ele ressaltou o desapontamento frente à política nacional e criticou a seriedade de nossos políticos. Desta vez não me fiz de rogado, pedi pra tirar uma foto – confesso que sou fã da banda – e posei ao lado de uma das lendas do rock nacional.

Saí, acompanhando meus parceiros de perambulação pelos backstages. Do lado de fora – tudo muito rápido – Miguel já entabulava conversa com uma cara alto, de gorro. Me toquei e vi que era ninguém menos que Edgard Scandurra. Muito gentil, o guitarrista do Ira! respondeu às perguntas de Miguel. Mais fotos. Minha personalidade oscilou entre o repórter e o fã. Enfim, profundamente agradecidos, nos despedimos do Edgard.

Me senti de alma lavada. Após um rápido roteiro mental decidi os rumos do meu texto e decretei por encerrada a noite – já sabia (como depois se confirmou) que Lulu Santos não falaria com a imprensa, muito menos posaria pra fotos. O estrelismo é inversamente proporcional à sabedoria e às boas maneiras – raciocinei.

Curti o show do Ira! Dei-me ao luxo de algumas latinhas de cerveja. Vendo aqueles caras no palco, eletrizando um público entusiasmado, vivi meu lado de fã deslumbrado.

Vi o show acompanhado por amigos da faculdade. Um colega de curso me pediu a câmera para fazer algumas fotos, lhe cedi o aparelho. Neste intervalo de tempo lembrei que precisava de algumas informações – não tinha observado a que horas o Ira! tinha subido ao palco – entre outros detalhes. Fui à sala de imprensa e, valendo-me mais uma vez da prestativa Raquel, obtive as informações que precisava. Ao retornar recebi a câmera de volta e curti o resto da apresentação.

Em meio a pedidos de mais, o Ira! saiu do palco às 3:40 da manha. Os demais espaços encerraram suas atividades no mesmo período. O parque se esvaziava...

Encontrar condução não foi tarefa fácil: táxis lotados, carros saindo, um mar de gente. Um congestionamento formou-se em frente ao Parque Teopompo de Almeida.

Ao chegar liguei meu computador, estava ansioso, não só para começar a escrever mas, também, para enviar minhas preciosas imagens ao site. Conectei a máquina fotográfica, reiniciei o computador para o devido reconhecimento do dispositivo e, estranho, só havia três imagens na câmera. Não acreditei. Algo devia estar errado. Talvez o programa de transferência de arquivos não tinha reconhecido por completo as fotos. Desconectei o equipamento e, desesperadamente, constatei que todas as fotos, com exceção das três últimas tiradas por meu colega, haviam sido apagadas da memória da câmera fotográfica. Tive um acesso de cólera. Invoquei mil demônios. Amaldiçoei a hora que cedi a máquina ao colega. O odiei. Considerei que tal ato tinha sido feito por inveja e maldade.

Mais frio, abandonei o julgamento anterior – me nego a acreditar nisso. Por fim me culpei. Afinal, com o material precioso que estava em mãos, nunca deveria facilitar e deixar em mãos de terceiros – ainda mais quando este já continha boa quantidade de álcool no sangue.

Tomei um banho, fui ao bar vizinho, peguei quatro cervejas e comecei a escrever minha estória...

terça-feira, 9 de setembro de 2008

Chuva

Da minha infância e adolescência quase nada vale a pena ser narrado. Sempre fui um mero qualquer, sem grandes destaques e sem grandes quedas. As lembranças mais intensas e as que mais me interessam remontam de cerca de um ano atrás. Imprecisamente desde esse tempo vivo outra vida.
Lembro-me que o Corsa Sedan deslizava na lama mole e escorregadia. Senti um breve frio no peito e, com uma redução de marcha e as devidas correções no volante, pus o carro na direção correta. Chovia. Torrencialmente. Reconheci o trecho e constatei que ainda tínhamos que rodar uns vinte quilômetros até a localidade de Cachoeira, distante vinte e oito quilômetros de Vitória da Conquista.
Uma hora antes, quando os primeiros trovões ribombavam no céu, tinha decidido ligar para Ana. Na verdade não tinha nada específico a dizer-lhe. Apenas um desejo, lento e subterrâneo, me impulsionava a tão magnética companhia. Por telefone disse-lhe que iria dar umas voltas, a negócios, e a convidei para irmos juntos. Com um “pode ser”, felpudo, ela aceitou prontamente. Ana era uma mulher ímpar. Alguns a colocariam entre o rol dos astros estelares: com luz própria e um centro de gravidade que reunia, em maior ou menor grau, planetas que habitavam em sua órbita. De olhar profundo e apaixonado lembrava as esculturas clássicas de Vênus. Essa era Ana. Tempos antes, quando ouvi as primeiras lendas a respeito de dela, um conhecido advertiu-me que aquela mulher era perigosa; que tinha algo a ver com a Pomba-Gira, e muitos se perderam pelos seus caminhos. Como tenho uma tendência natural ao perigo e aos caminhos tortuosos, o conselho, ao invés de suscitar inibição e cautela, serviu como adubo ao meu fértil jardim de desejos.
Depois de pegá-la no terminal da Avenida Lauro de Freitas, expliquei-lhe que iria tratar de uns negócios na zona rural, talvez como passeio valesse à pena e, em breve, a deixaria em casa. Com uma afirmativa em forma de “pode ser”, nos dirigimos à casa de Bruna.
Conheci Bruna há cerca de 4 anos. Trabalhávamos juntos em uma grande loja, onde convivemos por quase um ano. Esta moça, após vir da zona rural, se estabeleceu em Vitória da Conquista, e acumulou várias atividades, entre elas revender roupas a crediário.
Como última parada estacionei em um posto de gasolina, na Avenida Frei Benjamim. Compramos combustíveis para ambos: nós e o carro. Tomadas todas as providências, rumamos em direção aos Campinhos. Os trovões deixaram de prometer. Agora pareciam fender o céu, fazendo desabar grossos pingos de chuva. Ao som de Chico Science e Nação Zumbi avançamos a baixa velocidade, através da estrada que se desfazia em lama.
A forte chuva, aliada às torrentes que se formavam ao longo da estrada, tornava o trajeto lento e perigoso. Era preciso parar. Permanecemos alguns instantes dentro do carro, os faróis ligados permitiam ver os grossos pingos que desabavam sobre a terra. Com os vidros fechados o ar tornava-se úmido e carregado. Fazia calor. Lembrei-me dos tempos de criança: o cheiro de esparsas gotas de chuva molhando a terra, a atmosfera que mudava, os trovões e, súbito, o toró; as ruas viravam verdadeiros picadeiros de um circo sem lonas. Às vezes, em meio ao espetáculo molhado, os artistas eram retirados, com puxões de orelhas e palmadas, por mães ruidosamente cuidadosas. Os palhaços iam escoltados pra casa, com as lágrimas camufladas pela imensidade de água que desabava.
Com a intenção de provocar fiz um convite à chuva. Ana, confirmando o que eu suspeitava, gargalhou afirmativamente. Bruna achou a idéia meio doida. Apressei-me em tirar calça, camisa e sapatos e ficar só de cueca. Ana decidiu molhar a roupa. Saímos do veículo aos pulos e gritos, com os faróis iluminando a estrada deserta. Por alguns instantes brincamos como adultos voltando a ser crianças. Tremi. Não de frio, mas de algo que ocorre quando me encontro em situações de fragilidade. Nervosismo mesmo. Neste momento não me sentia mais criança, mas um adulto que acorda de um momento de sonho e enxerga a impassível realidade. Sapos e rãs saltavam de uma poça para outra. Peguei uma rã, senti sua pele fria e a libertei no córrego que fluía sob meus pés. Pensei nos animais, nos seus ciclos e nas suas simplicidades. A vida para eles era a continuidade da prole, o que importava era a espécie. Experimentei a melancolia que sobrevém à descoberta de uma verdade ou à volta do abismo das reflexões. Sugeri entrarmos no automóvel e prosseguir viagem. Evito fumar mas, nesta ocasião, aceitei o cigarro de Ana e dei boas tragadas. O fumo recendeu pelo interior do veículo e nas entranhas de minha alma. Ainda no século VI aC, Heráclito de Éfeso afirmou que nunca somos os mesmos, que estamos sempre mudando. Naquele momento percebi o exato instante em que as afirmações do pensador grego se comprovavam. Reinava no interior do Corsa uma aura de igreja. Talvez o Sagrado. Os segundos e minutos se transformam horas... Apaguei os faróis e, após acionar a ignição, reacendi-os. Maciamente voltamos a rodar, com a velocidade inversamente proporcional à diminuição do dilúvio.
Na localidade de Iguá não havia mais chuva. Minutos depois, ao chegar a Cachoeira, constatamos que o chão estava seco. Estacionei o carro no fim da estrada. Tomamos uma trilha e caminhamos cerca de 20 minutos, sob o tímido luar. Deixamos Bruna na casa dos pais. Alegamos pressa e recusamos o café. Voltamos pelo mesmo caminho. Ana, apesar do auxilio da fraca luz do aparelho celular, enroscou uma das pernas em um galho de espinho caído no chão, arranhou-se. Conversamos sobre muitas coisas. Fui tomando minhas conclusões: apesar das experiências serem bem distintas, aquela mulher era muito parecida comigo.
Alcançamos o carro e tomamos o caminho de volta. No intervalo dos silêncios sufocantes, esboçávamos um início de conversa. A estrada não apresentava mais os perigos de outrora. Retornamos à cidade. Paramos no mesmo posto de gasolina e compramos duas cervejas. Ainda bebendo rumamos para sua casa. Ana dividia aluguel com duas amigas, colegas de faculdade. Antes de chegar passamos em um bar e refizemos o estoque de álcool.
A casa era singela. Situada em um desses antigos conjuntos habitacionais de Conquista a construção era composta de três quartos, sala, cozinha e banheiro - além de garagem e quintal. Suas companheiras de casa estavam viajando, de forma que ficamos totalmente à vontade na casa. Mais cerveja e, quando me dei conta estava mordiscando e lambendo os lábios de Ana. Minhas suspeitas estavam corretas, reuniam-se naquela mulher o céu e o inferno.
Não me lembro quanto tempo ficamos envoltos como um só corpo, em uma cápsula de suores e secreções. Guardo como ponto de referência o momento em que ela foi ao quarto e trouxe um estojo de maquiagem. Não estava tão ébrio a ponto de não estranhar aqueles produtos naquela hora. Confesso minha surpresa ao ver que a única tonalidade do conteúdo daquela caixinha era branca. Com desenvoltura minha parceira espalhou uma boa quantidade de cocaína sob o vidro do pequeno móvel de sala e, com um cartão telefônico, esticou duas longas carreiras. Em seguida tirou um tubinho de caneta de algum lugar e aspirou uma das lagartas. Deu uma grande espreguiçada, sacudiu os longos cabelos para trás, sentou em meu colo e me beijou longamente. Ao fim tive um leve adormecimento na língua. Senti medo. Já tinha visto cocaína antes, mas nunca havia tido coragem para usar, até então apenas álcool e um baseadinho uma ou outra vez. Senti medo porque naquela hora era diferente. Aquela mulher, o que fizemos... Tive medo por saber que teria coragem de com ela ir aos mais profundos abismos. Derrubaríamos todas as portas e libertáramos tudo que aspira a liberdade.
Com a garganta semi-adormecida procurei avidamente o corpo de Ana. Repetimos por diversas vezes as operações no tampo de vidro. A cerveja parecia não saciar. Conversamos mais, ou melhor, viramos os mais exagerados tagarelas. Nesta noite soube de parte de sua vida e, como pagamento, fiz uma narrativa das minhas aventuras e desventuras.
Amanhecia. No quintal fizemos uma pequena fogueira de folhas amassadas de papel. Um pássaro passou em um vôo rasante por nossas cabeças. Fumamos e retornamos para o calor do quarto. Dormi um sono inquieto, como cochilos interrompidos por flashs da noite anterior. Ana ressonava ao meu lado como a mais pura das criaturas.
Algum tempo depois – relógios eram acessórios totalmente indesejados entre mim e Ana – despertei. Lembrei dos compromissos do dia: trabalho, contas a receber e a pagar, faculdade e leituras pendentes e toda a minha simples rotina. Senti uma angústia tremenda. Uma espécie de esvaziamento vital e ensaiei uma incursão ao banheiro. Tarefa difícil. Simulei centenas de vezes uma estratégia para vencer os imensos metros que me separavam do chuveiro. Enfim consegui. Após o banho pude destilar melhor meu baixo astral. Chorei. Era como se um enorme bloco de concreto estivesse sob meu peito. Permaneci nessa letargia por minutos, horas, não sei... Em um impulso fui à geladeira e, descobrindo duas latas de cerveja que sobreviveram à nossa sede, procurei restabelecer o nível de álcool no sangue. Tive ímpetos de assaltar o estojo de maquiagem de minha amiga quando percebi que havia restos de pó sobre o vidro da mesa de centro. Tratei de deixar tudo bem limpo. Fui desviado de minha tarefa pelo ruído de um fluxo de líquido caindo sob líquido: a porta aberta do banheiro denunciava que Ana urinava ruidosamente sob o vaso sanitário.
Meu telefone dava mostras ruidosas e insistentes de que eu tinha vida lá fora. Não atendi. Depois de algumas chamadas não atendidas o silenciei. Ana pegou seu celular e pediu mais cerveja e pizzas. A sessão recomeçou. No meio da manhã um carteiro tentou nos tirar de nosso retiro. Não obteve sucesso.
Alheios ao mundo que pulsava lá fora permanecemos recolhidos por três dias em nossa pequena bolha. Tive medo de ligar o celular, sabia que milhões de ligações estavam pendentes. Senti nojo de como vivia preso a compromissos, acordos e formalidades. Depois de nos certificarmos que todo o narcótico havia acabado tentamos dormir. Mesmo estando exaustos a tarefa não foi fácil. É difícil relaxar quando se está há muitas horas acordado, bebendo e cheirando. Por fim dormi três dias.
Não me recordo como e quando mas, ao voltar à realidade, Ana já havia saído e Júlia e Sinara – as outras moças que dividiam o aluguel com minha amiga - já haviam chegado de suas respectivas viagens. Timidamente reuni os frangalhos do que me compunha e tomei o rumo de casa.
Procurei Ana. Inúmeras vezes. Saíamos à noite. Íamos a bares, praças e motéis. Tornei-me uma espécie de inquilino de seu quarto. Bebíamos e cheirávamos constantemente. Comecei a pegar gosto pela coisa e, quando dei por mim, estava negociando cocaína com o submundo dos negócios. A princípio tentei levar normalmente minha rotina, executando minhas tarefas, fazendo meus trabalhos escolares e freqüentando, a contra gosto, o almoço familiar de domingo.
Em certa ocasião resolvemos que não poderíamos continuar bebendo e usando cocaína. Tínhamos consciência que, como fogo e pólvora, juntos éramos por demais perigosos, não havia mais como continuar incendiando as madrugadas sem sairmos ilesos.
Sumi, Ana sumiu. Vivi dias que oscilavam entre um certo alívio e uma sufocante angústia. O meu espírito tinha sede e anseio dos mais altos vôos. Sentia falta da minha amiga. Desejava novamente com ela dar saltos e acrobacias sobre o colchão da moral e das convenções. Os dias tornaram-se insuportáveis. Voltei a beber com uma sede maior que antes.
Não estou certo exatamente da data, mas me recordo que era uma sexta feira. A rua estava bem movimentada, o fluxo de carros e pedestres dava mostras que aquele era um pedaço pulsante das frias noites conquistenses. Logo no início do circuito – esquina com a Praça do Gil – O ambiente é pequeno e cadeiras e mesas plásticas obstruem a passagem daqueles que tentam acessar o pequeno recinto. Fumaça de cigarro dá a impressão de estarmos em uma sauna ou encobertos pela cerração. Do lado de fora mesas ocupam a calçada e impedem os carros de estacionar em frente ao bar. Os freqüentadores do Paraki se diferem dos demais por serem o que chamamos de público alternativo: o pessoal que curte rock (é o som que predomina), artesãos, artistas, intelectuais, professores e estudantes, além de uma diversificada fauna de tipos humanos. Contraditoriamente, logo acima, no Castelo do Vinho, o ambiente é diverso: o som é outro (qualquer coisa que esteja fazendo sucesso nos meios populares é exaustivamente executado a noite toda), os visuais são mais apurados. Carros, cabelos, celulares e batons deixam claro que o pessoal ali tem, ou pretende ter, certo status de ladys e sirs. Prefiro o Paraki ao Castelo do Vinho. Na verdade conheço muito pouco este, creio que o freqüentei duas, ou três vezes, totalmente embriagado.
Entrei no Paraki, cumprimentei os conhecidos e, com algum esforço, consegui chegar ao balcão. Tomei meu conhaque vagarosamente. Há dois meses não via Ana. Tinha ouvido dizer que ela estava saindo com alguém e, como tínhamos combinado, não houve telefonemas. Pedi outro conhaque, seco. A TV, sem áudio, exibia o Programa do Jô. Acima, em uma estante à minha direita, duas caixas de som despejavam a poesia de Cazuza:
“Vivo depressivo
Na areia da praia
Eu banco o depressivo
Talvez você caia
Na minha rede um dia
Cheia de cacos de vidro
De cacos de vidro”
Os vapores do conhaque e a melodia me embalaram ladeira abaixo. Aguardei pacientemente a fila do banheiro e finalmente pude aliviar minha bexiga. Paguei a conta e tive a intenção de sair discretamente quando me deparei, à entrada, com Ana, Júlia e Sinara, além de dois outros rapazes.
- Já vai? Disse Ana, com sua característica voz felpuda.
- Ah, sim. Tava de saída. Respondi timidamente.
- Tá cedo, atalhou Júlia, pastosamente e amparada por um dos moços.
- Fica com a gente, complementou Sinara, encorajando-me com uma piscada com olho direito.
Fingi certa pressa e, depois de algumas insistências cedi ao meu real interesse: ficar com Ana.
- Ah, quero te apresentar o João, meu amigo. Disse Ana com certa formalidade. E este é Rubens, seu colega. Eles são representantes comerciais.
- Muito prazer, respondi ao cumprimento com um aperto de mão.
Os caras não aparentavam ser maus. De inicio mantivemos nosso comportamento de forma discreta, nos estudando mutuamente. Percebi que, exceto a mim, todos na mesa estavam com corise. As meninas usavam lenços de papel e os rapazes fungavam de forma mais ou menos educada. Deduzi logo o porquê e alfinetei:
- Essa mudança de clima em Conquista deixa todos gripados. Parece um resfriado coletivo e sem fim.
- Isso mesmo, disse um dos rapazes.
- É... uma gripe danada, riu Júlia, levando o indicador à narina direita e dando uma vigorosa puxada.
- Tá rolando, disse Ana, com ar de professora que tolhe as piadas dos alunos.
- Mesmo? Exclamei com um falso espanto. E aí, continuei com um ar sério, onde faremos o rock?
- Vamos pra casa, sugeriu Sinara.
- Logo sem demora, traí minha falsa calma e demonstrei toda a minha ansiedade.
- Calma, acabamos de chegar, vamos ao menos tomar umas cervejas antes de sair. Sentenciou Ana.
Os rapazes permaneciam a maior parte do tempo quietos ou, vez por outra, trocavam entre si umas frases inaudíveis. As garrafas de cerveja foram vindo e sendo esvaziadas, duas, três, cinco... Quando finalmente decidimos pagar nos demos conta que havíamos consumido quinze garrafas: nove litros de cerveja.
Enfim fomos para casa. Senti um frenesi por estar novamente entre aquelas paredes que tantas coisas testemunharam. Senti ciúme dos amigos de Ana. Imaginava com horror o que um, ou os dois, tinham feito com ela, e logo ali, onde tanta coisa tinha acontecido ente mim e aquela mulher.
A cerveja gelada e o pó amargo foram tirando o gosto de ciúme de minha boca. Foi irrelevante ver Ana trocando carícias com um dos rapazes e pouco me surpreendi quando Sinara me enlaçou pelo pescoço e me conduziu por trêmulas curvas morenas aos mais loucos cumes. Júlia, totalmente embriagada, clamava para ser duplamente penetrada. Não me recordo a ordem, mas em algum momento Ana veio a meus braços, não só transamos, fizemos amor. Naquele mar quente de carnes, uivos e sussurros, refizemos nossa ilha e decidimos voltar a habitar nela. A festa terminou pela manhã, em uma churrascaria da cidade. Com direito às últimas cervejas e fatias de carne mal-passada.
Fui morar com Ana. Nos primeiros dias a convivências com as outras moradoras transcorreu sem problemas. Logo vieram os ventos da discórdia. Havia entre Júlia e Ana uma relação afetiva. Júlia sofria acres dores com os relacionamentos de Ana, mas eram aventuras pueris, distantes dos olhos e sem o nível de cumplicidade e intimidade que existia entre as duas amigas. Com a minha vida para o convívio diária a coisa mudara. Eu era praticamente o marido de Ana. Era muito difícil de aceitar. Somando a isso as meninas não mais desfrutavam de sua liberdade para desenvolver e preparar feitiços e encantos. Em pouco me vi perseguido por toda uma série de pequenos venenos e conspirações.
Com certo desgaste Júlia e Sinara foram embora. Ficamos com a casa só para nós. É verdade que com a saída das meninas o aluguel aumentou, mas tínhamos liberdade.Dávamos festas regularmente. Íamos aos bares da cidade, às festas de camisa, vaqueijada e shows. Fizemos até duas viagens, uma para Lençóis e outra para Itacaré. E éramos clientes vip dos traficantes da cidade. Procurei bom investimento para os mais de oito mil reais que saquei da poupança e as minhas sobras de mercadoria que fui torrando pouco a pouco.
Não sei que seguiu quem, mas depois de um tempo Ana e eu trancamos nossas matrículas na faculdade. A academia soava óbvia e chata demais para as nossas vidas aceleradas. Viajamos para Salvador, onde conhecemos todos os hotéis baratos da Cidade Baixa. Dinheiro passou a ser um problema que ameaçava o dia-a-dia nossos vôos. Nos viramos como pudemos. Sempre precisava ficar bêbado para ver Ana partir e chegar, sempre diferente, meio murcha, como se tivesse sido amarrotada dentro de uma máquina de lavar. Outras horas me embalava na cocaína com Campari para produzir prazer homossexual de forma infalível. Ficamos nessa não sei por quanto tempo. Até que conhecemos Caio. Moreno, cabelos lisos, estatura mediana, e uns vivos olhos pretos, o gaúcho só conseguia penetrar uma mulher sendo possuído por outro homem ao mesmo tempo. Para seus clientes e todos os seus parceiros no negócio de transporte e venda de cocaína Caio escondia suas preferências sexuais.
Depois de um breve acerto iniciamos nossas atividades ilegais no transporte e venda de narcóticos. Para nós mercadoria para consumir não seria mais problema. Recebemos uma passagem para Cuiabá, de lá fomos levados para uma fazenda e fomos apresentados a alguns senhores.
Negócio acertado instruções dadas e cá estou, neste quarto de hotel, fronteira do Brasil com o Paraguai. O ar está abafado. Acabei de quebrar mais um pedaço de dente, há um tempo meus dentes estão se esfarelando, dizem que é o efeito da descalcificação causada pela cocaína. Que importa? Vou fazer essa viagem, depois e mais duas, então terei dinheiro para por dentes novos. E Ana que não chega... Já era para ter voltado... Ah, se pudesse tomava algo antes de embarcar e só acordaria em Salvador. E Ana, se ao menos tivesse um celular aqui...Já devia ter chegado. Esse dente que não pára de doer. Bem, quem tem cinco quilos de cocaína pura na mochila não deve sofrer com dor de dente. Fui orientado a não cheirar durante a viagem, mas um tirinho não vai fazer mal. O quê? Ouço barulho, tem gente na porta.
-Quem está aí? É você Ana?
- Polícia Federal! Abra a porta ou vamos arrombar. Você está cercado.